experimentam a “tirania da liberdade” em que as crianças podem tudo:
gritam, riscam as paredes, ameaçam as visitas em face da autoridade
complacente dos pais que se pensam ainda campeões da liberdade. (PAULO
FREIRE, 2000)
A sociedade moderna vive uma crise de valores éticos e morais sem precedentes. Essa é uma constatação
que nada tem de original, pois todos a estão percebendo e vivenciando de alguma maneira. O fato de ser
uma professora a fazer essa constatação também não é nenhuma surpresa, pois é na escola que essa crise
acaba, muitas vezes, ficando em maior evidência.
Nunca na escola se discutiu tanto quanto hoje assuntos como falta de limites, desrespeito na sala de aula e
desmotivação dos alunos. Nunca se observou tantos professores cansados, estressados e, muitas vezes,
doentes física e mentalmente. Nunca os sentimentos de impotência e frustração estiveram tão
marcantemente presentes na vida escolar.
Para Esteve (1999), toda essa situação tem relação com uma acelerada mudança no contexto social.
Segundo ele, nosso sistema educacional, rapidamente massificado nas últimas décadas, ainda não dispõe de uma capacidade de reação para atender às novas demandas sociais. Quando consegue atender a uma
exigência reivindicada imperativamente pela sociedade, o faz com tanta lentidão que, então, as demandas
sociais já são outras (1999: 13).
Por essa razão, dentro das escolas as discussões que procuram compreender esse quadro tão complexo e,
muitas vezes, caótico, no qual a educação se encontra mergulhada, são cada vez mais freqüentes.
Professores debatem formas de tentar superar todas essas dificuldades e conflitos, pois percebem que se
nada for feito em breve não se conseguirá mais ensinar e educar. Entretanto, observa-se que, até o
momento, essas discussões vêm sendo realizadas apenas dentro do âmbito da escola, basicamente
envolvendo direções, coordenações e grupos de professores. Em outras palavras, a escola vem,
gradativamente, assumindo a maior parte da responsabilidade pelas situações de conflito que nela são
observadas.
Assim, procura-se em novas metodologias de trabalho, por exemplo, as soluções para esses problemas.
Computadores e programas de última geração, projetos multi e interdisciplinares de todos os tipos e para
todos os gostos, avaliações participativas, enfim uma infinidade de propostas e atividades visando a,
principalmente, atrair os alunos para os bancos escolares. Não é mais suficiente a idéia de uma escola na
qual o individuo ingressa para aprender e conhecer. Agora a escola deve também entreter.
No entanto, apesar das diferentes metodologias hoje utilizadas, os problemas continuam, ou melhor, se
agravam cada vez mais, pois além do conhecimento em si estar sendo comprometido irremediavelmente, os
aspectos comportamentais não têm melhorado. Ao contrário. Em sala de aula, a indisciplina e a falta de
respeito só têm aumentado, obrigando os professores a, muitas vezes, assumir atitudes autoritárias e
disciplinadoras. Para ensinar o mínimo, está sendo necessário, antes de tudo, disciplinar, impor limites e,
principalmente, dizer não.
A questão que se impõem é: até quando a escola sozinha conseguirá levar adiante essa tarefa? Ou melhor,
até quando a escola vai continuar assumindo isoladamente a responsabilidade de educar?
São questões que merecem, por parte de todos os envolvidos, uma reflexão, não só mais profunda, mas
também mais crítica. É, portanto, necessário refletir sobre os papéis que devem desempenhar nesse
processo a escola e, conseqüentemente, os professores, mas também não se pode continuar ignorando a
importância fundamental da família na formação e educação de crianças e adolescentes.
Voltando a analisar a sociedade moderna, observa-se que uma das mudanças mais significativas é a forma
como a família atualmente se encontra estruturada. Aquela família tradicional, constituída de pai, mãe e
filhos tornou-se uma raridade. Atualmente, existem famílias dentro de famílias. Com as separações e os
novos casamentos, aquele núcleo familiar mais tradicional tem dado lugar a diferentes famílias vivendo sob
o mesmo teto. Esses novos contextos familiares geram, muitas vezes, uma sensação de insegurança e até
mesmo de abandono, pois a idéia de um pai e de uma mãe cuidadores dá lugar a diferentes pais e mães
“gerenciadores” de filhos que nem sempre são seus.
Além disso, essa mesma sociedade tem exigido, por diferentes motivos, que pais e mães assumam
posições cada vez mais competitivas no mercado de trabalho. Então, enquanto que, antigamente, as
funções exercidas dentro da família eram bem definidas, hoje pai e mãe, além de assumirem diferentes
papéis, conforme as circunstâncias saem todos os dias para suas atividades profissionais. Assim, observase
que, em muitos casos, crianças e adolescentes acabam ficando aos cuidados de parentes (avós, tios),
estranhos (empregados) ou das chamadas babás eletrônicas, como a TV e a Internet, vendo seus pais
somente à noite.
Toda essa situação acaba gerando uma série de sentimentos conflitantes, não só entre pais e filhos, mas
também entre os próprios pais. E um dos sentimentos mais comuns entre estes é o de culpa. É ela que, na
maioria das vezes, impede um pai ou uma mãe de dizer não às exigências de seus filhos. É ela que faz um
pai dar a seu filho tudo o que ele deseja, pensando que assim poderá compensar a sua ausência. É a culpa
que faz uma mãe não avaliar corretamente as atitudes de seu filho, pois isso poderá significar que ela não
esteve suficientemente presente para corrigi-las.
Enfim, é a culpa de não estar presente de forma efetiva e construtiva na vida de seus filhos que faz, muitas
vezes, um pai ou uma mãe ignorarem o que se passa com eles. Assim, muitos pais e mães acabam
tornando-se reféns de seus próprios filhos. Com receio de contrariá-los, reforçam atitudes inadequadas e,
com isso, prejudicam o seu desenvolvimento, não só intelectual, mas também, mental e emocional.
Esses conflitos acabam agravando-se quando a escola tenta intervir. Ocorre que muitos pais, por todos os
problemas já citados, delegam responsabilidades à escola, mas não aceitam com tranqüilidade quando
essa mesma escola exerce o papel que deveria ser deles. Em outras palavras,
[...] os pais que não têm condições emocionais de suportar a sua parcela de responsabilidade, ou culpa,
pelo mau rendimento escolar, ou algum transtorno de conduta do filho, farão de tudo, para encontrar
argumentos e pinçar fatos, a fim de imputar aos professores que reprovaram o aluno, ou à escola como um
todo, a total responsabilidade pelo fracasso do filho (ZIMERMAN apud BOSSOLS, 2003: 14).
Assim, observa-se que, em muitos casos a escola (e seus professores) acaba sendo sistematicamente
desautorizada quando, na tentativa de educar, procura estabelecer limites e responsabilidades. O resultado
desses sucessivos embates é que essas crianças e adolescentes acabam tornando-se testemunhas de um
absurdo e infrutífero cabo-de-guerra, entre a sua escola e a sua família. E a situação pode assumir uma
maior complexidade porque, conforme também explica Zimerman, “o próprio aluno, que não suporte
reconhecer a responsabilidade por suas falhas, fará um sutil jogo de intrigas que predisponha os pais contra
os professores e a escola” (apud BOSSOLS, 2003: 14).
Entretanto, é importante compreender que, apesar de todas as situações aqui expostas, o objetivo não é o
de condenar ou julgar. Está-se apenas demonstrando que, ao longo dos anos, gradativamente a família, por
força das circunstâncias já descritas, tem transferido para a escola a tarefa de formar e educar. Entretanto,
essa situação não mais se sustenta. É preciso trazer, o mais rápido possível, a família para dentro da
escola. É preciso que ela passe a colaborar de forma mais efetiva com o processo de educar. É preciso,
portanto, compartilhar responsabilidades e não transferi-las.
É dentro desse espírito de compartilhar que não se pode deixar de citar a iniciativa do MEC, que instituiu a
data de 24 de abril como o Dia Nacional da Família na Escola. Nesse dia, todas as escolas são estimuladas
a convidar os familiares dos alunos para participar de suas atividades educativas, pois segundo declaração
do ex-Ministro da Educação Paulo Renato Souza "quando os pais se envolvem na educação dos filhos, eles
aprendem mais".
A família deve, portanto, se esforçar em estar presente em todos os momentos da vida de seus filhos.
Presença que implica envolvimento, comprometimento e colaboração. Deve estar atenta a dificuldades não
só cognitivas, mas também comportamentais. Deve estar pronta para intervir da melhor maneira possível,
visando sempre o bem de seus filhos, mesmo que isso signifique dizer sucessivos “nãos” às suas
exigências. Em outros termos, a família deve ser o espaço indispensável para garantir a sobrevivência e a
proteção integral dos filhos e demais membros, independentemente do arranjo familiar ou da forma como se
vêm estruturando (KALOUSTIAN, 1988).
Educar, portanto, não é uma tarefa fácil, exige muito esforço, paciência e tranqüilidade. Exige saber ouvir,
mas também fazer calar quando é preciso educar. O medo de magoar ou decepcionar deve ser substituído
pela certeza de que o amor também se demonstra sendo firme no estabelecimento de limites e
responsabilidades. Deve-se fazer ver às crianças e jovens que direitos vêm acompanhados de deveres e
para ser respeitado, deve-se também respeitar.
No entanto, para não tornar essa discussão por demais simplista, é importante, entender, que quando se
trata de educar não existem fórmulas ou receitas prontas, assim como não se encontra, em lugar algum,
soluções milagrosas para toda essa problemática. Como já foi dito, educar não é uma tarefa fácil; ao
contrário, é uma tarefa extremamente complexa. E talvez o que esteja tornando toda essa situação ainda
mais difícil seja o fato de a sociedade moderna estar vivendo um momento de mudanças extremamente
significativas.
Segundo Paulo Freire: “A mudança é uma constatação natural da cultura e da história. O que ocorre é que
há etapas, nas culturas, em que as mudanças se dão de maneira acelerada. É o que se verifica hoje. As
revoluções tecnológicas encurtam o tempo entre uma e outra mudança” (2000: 30). Em outras palavras,
está-se vivendo, em um pequeno intervalo de tempo, um período de grandes transformações, muitas delas
difíceis de serem aceitas ou compreendidas. E dentro dessa conjuntura está a família e a escola. Ambas
tentando encontrar caminhos em meio a esse emaranhado de escolhas, que esses novos contextos, sociais,
econômicos e culturais, nos impõem.
Para finalizar esse texto é importante fazer algumas considerações que, se não trazem soluções definitivas,
podem apontar caminhos para futuras reflexões. Assim, é preciso compreender, por exemplo, que no
momento em que escola e família conseguirem estabelecer um acordo na forma como irão educar suas
crianças e adolescentes, muitos dos conflitos hoje observados em sala de aula serão paulatinamente
superados. No entanto, para que isso possa ocorrer é necessário que a família realmente participe da vida
escolar de seus filhos. Pais e mães devem comparecer à escola não apenas para entrega de avaliações ou
quando a situação já estiver fora de controle. O comparecimento e o envolvimento devem ser permanentes
e, acima de tudo, construtivos, para que a criança e o jovem possam se sentir amparados, acolhidos e
amados. E, do mesmo modo, deve-se lutar para que pais e escola estejam em completa sintonia em suas
atitudes, já que seus objetivos são os mesmos. Devem, portanto, compartilhar de um mesmo ideal, pois só
assim realmente estarão formando e educando, superando conflitos e dificuldades que tanto vêm
angustiando os professores, como também pais e os próprios alunos.
Margarete J. V. C. Hülsendeger