Jo 18,33b-37
Naquele tempo:
33bPilatos chamou Jesus e perguntou-lhe:
'Tu és o rei dos judeus?'
34Jesus respondeu:
'Estás dizendo isto por ti mesmo,
ou outros te disseram isto de mim?'
35Pilatos falou: 'Por acaso, sou judeu?
O teu povo e os sumos sacerdotes te entregaram a mim.
Que fizeste?'.
36Jesus respondeu:
'O meu reino não é deste mundo.
Se o meu reino fosse deste mundo,
os meus guardas lutariam
para que eu não fosse entregue aos judeus.
Mas o meu reino não é daqui'.
37Pilatos disse a Jesus:
'Então tu és rei?'
Jesus respondeu:
'Tu o dizes: eu sou rei.
Eu nasci e vim ao mundo para isto:
para dar testemunho da verdade.
Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz'.
Reflexão
As leituras de hoje são caracterizadas pela brevidade, mas uma característica que eu gosto muito dos textos bíblicos, é aquela de condensar a riqueza dos significados em poucas palavras. Esta era também uma das características basilares da literatura antiga, devida ao fato que eram poucas as pessoas capazes de escrever e que o mesmo material era muito custoso, mais do que hoje. Além desta curiosidade, festejamos hoje a solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, rei do Universo, que fecha o ano litúrgico, mas a escolha da liturgia parece não se bater bem com esta recorrência. Jesus é o rei do universo, mas a liturgia nos propõe um trecho da sua paixão. Quem escolheu as leituras errou? Há um particular que deveria chamar a nossa atenção: o Evangelho é aquele de João.
Quem conhece um pouco a Bíblia sabe muito bem que o quarto Evangelho não é como os outros. O meu professor de Novo Testamento me ensinou que o Evangelho joanino está permeado pela “ironia”, ou seja, “dizer alguma coisa dizendo outra”. Um exemplo? Jo 19,2: Jesus é zombado pelos soldados, mas a coroa e o manto são as insígnias regais. Não quero complicar as coisas, mas simplesmente sublinhar como João através da ironia, leva o leitor a cumprir um percurso. Portanto vamos descobrir qual é o percurso que a liturgia nos doa nesse domingo. Temos aqui Pilatos e Jesus, um na frente do outro. De um lado o procurador, que representa o imperador, aquele que tem nas próprias mãos o poder de decisão, até sobre a vida ou a morte das pessoas. Do outro Jesus, que nem tem “onde reclinar a cabeça” (Lc 9,58). De um lado a autoridade política que exerce o poder com a constrição e a força; do outro a autoridade “espiritual” que exerce o poder com o amor e a fidelidade á aliança com o homem. De um lado “o poderoso” porque tem um exercito ao seu serviço, do outro “o poderoso” porque tem o poder de dar a própria vida para retomá-la (Jo 10,17). Se pode compreender como João está apresentando duas realezas opostas: uma aceitável segundo as categorias humanas, outra “que para os judeus é escândalo, para os gentios é loucura” (1Cor 1,23). João está nos dizendo: o verdadeiro rei não é aquele que parece poderoso, mas que acaba ficando aprisionado pelo próprio poder, que parece dar segurança, mas na verdade desaparece como todos os reinos deste mundo (Dn 2). Ao contrário é verdadeiro rei quem consegue dar esperança, mas, sobretudo vida aos próprios “súditos” (O pão que eu darei é a minha carne para a vida do mundo -Jo 6,51b-). Onde está a ironia? João apresenta o verdadeiro rei zombado, espancado e desfigurado: é possível aceitar como rei um homem pregado na cruz? O leitor deve dar uma reviravolta ás próprias categorias, ou seja, abandonar ás deste mundo (o poder, o sucesso, a força), para acolher ás “do mundo” de Jesus (o amor, o sacrifício, a fidelidade, a gratuidade). O relato da paixão, em João, tem esta mensagem: a cruz não foi um incidente de percurso, uma bonita história com um final terrível, mas a maneira mais linda em que a história de Jesus podia acabar. Como aquele pai da parábola (Lc 15,11-31), largou os braços para acolher o filho que voltou para casa, assim Jesus largou os seus braços na cruz para abraçar a humanidade toda, com a certeza que uma vez elevado da terra teria atraído todos a ele (Jo 12,32). Portanto João apresenta as duas realezas deixando que seja o leitor a escolher. Até que não conseguiremos olhar a cruz como o trono e a vitória de Deus em Jesus, não será possível festejar a solenidade de hoje. Vamos pedir a Santa Paula Elisabete que nos ajude a cumprir este percurso de modo que possam ressoar em nós estas suas palavras: “A cruz de Jesus se imprima no teu coração e te faça generoso e forte para seguir a ele todos os dias da tua vida”.